Se você já sabe qual é a diferença entre ser um viajante e ser um turista, então você consegue entender como o ato de viajar transforma o pessoa que viaja. E se essa viagem for sustentável, ela transforma não só o viajante, mas também as comunidades que o recebem e que vivem do turismo.
Mas o que eu vim te contar com esse texto é que os impactos do turismo sustentável são MUITO maiores do que essas simples situações.
Como isso acontece?
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Quando conhecemos culturas diferentes e observamos as diversas formas como os humanos forjam laços entre si e com a natureza, inevitavelmente passamos a reavaliar a nossa própria realidade. Tudo aquilo que até então pensávamos ser a única possibilidade se torna mais uma entre infinitas alternativas que o mundo nos oferece.
Inclusive em relação à economia, à sociedade, à natureza: à sustentabilidade.
E como isso pode ser usado para transformar o mundo?
Em três perspectivas: (1) a comunidade receptora do turismo, (2) o viajante e (3) os dois juntos: a sociedade.
Em primeiro lugar, o turismo autêntico e responsável tem a capacidade de empoderar as comunidades e suas culturas. Não apenas economicamente, mas despertando nos cidadãos o senso de valorização das próprias raízes diante do potencial turístico e econômico delas. Contudo, não é isso que acontece na grande maioria dos casos.
Recentemente ouvi o relato de uma turismóloga que visitou o povoado de San Pedro do Atacama, no Chile, se apaixonou e fixou raízes no lugar. Entretanto, ela incorporou a luta em defesa dos moradores locais, que são subjugados pela opressão do turismo exploratório. Estão desempregados pois não conseguem concorrer com as agências de turismo que se instalaram ali, enquanto a sua cultura é explorada como um produto vendido aos turistas. Também já apresentamos uma análise parecida aqui no blog sobre a nossa experiência cultural em Veneza nessa mesma perspectiva.
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Em segundo lugar, a transformação também acontece na vida do viajante: a expansão da compreensão da multiplicidade de possibilidades, soluções e alternativas advindos da observação respeitosa das culturas. Viajar enriquece o viajante com histórias, lições, aprendizados e capacidade de conexões que seriam improváveis em um contexto restritivo. Ele pode se tornar tanto um profissional melhor como um cidadão e pessoa melhor.
É por isso que um dos primeiros textos do blog foi feito para orientar os viajantes a planejar uma viagem com propósito e a relatá-la como uma experiência digna de currículo profissional. Leia aqui.
O terceiro ponto é o pilar central deste blog, e representa o foco da nossa missão:
O único futuro viável da humanidade está na capacidade de o viajante obter lições das comunidades tradicionais na sua relação humano-natureza, e transformá-las em soluções para os problemas da civilização moderna.
Isso está longe de significar que uma única comunidade tradicional tenha todas as respostas para os problemas do mundo. Mas cada povo que tenha uma cultura tradicional aborda um tipo de problema com soluções que foram implementadas e aperfeiçodadas por [milhares de] gerações. A observação e a análise de múltiplas abordagens certamente nos dará caminhos para ajustar nossas relações sociais, econômicas e ambientais, e diminuir o sofrimento que é viver em uma sociedade pandêmica.
"Diversas tradições indígenas ao redor do mundo sustentam há milênios a cosmovisão da relação entre os humanos e o mundo-mais-que-humano."
(Tradução livre das palavras de Mary Evelyn Tucker e John Grim no texto The Crisis of Planetary Health: Reflections from the World Religions)
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Ecojustiça, devoção e bondade são traços fortemente destacados em diversas culturas de povos tradicionais da Ásia. Muitos deles cultuam elementos naturais como rios e montanhas, e toda a dinâmica econômica e social dessas comunidades é consolidada ao redor de respeito à natureza.
Ao mesmo tempo, enquanto boa parte das religiões dominantes apresentam um forte senso de dignidade e justiça humana, muito da ecojustiça se perdeu, mesmo que ela seja o elemento primordial na sua concepção (no caso do Cristianismo e também do Judaísmo, a história de Adão e Eva e a sua responsabilidade em cuidar da criação).
Como recuperar o senso moral de ecojustiça?
Todas as culturas, incluindo a nossa, podem ensinar algo com respeito às relações sociais, econômicas e ambientais. A pandemia expôs as feridas mais putrefatas da humanidade e confirmou o discurso que os povos indígenas vem elevando há milênios:
"A cura para a próxima pandemia, até essa mesma, pode ser encontrada na biodiversidade nas terras indígenas. É por isso que precisamos proteger nossas terras e direitos, pois o futuro da vida depende disso."
(Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação de Povos Indígenas do Brasil, no texto COVID-19 crisis tells world what Indigenous Peoples have been saying for thousands of years)
Em um dos últimos textos publicados aqui no blog sobre pandemias, você pode entender melhor a relação entre a proteção da biodiversidade e a saúde humana. Leia aqui.
Para recuperar o senso e o dever moral de respeito à vida, devemos nos voltar aos instrumentos legais como a Constituição, aos manifestos universais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e também à base da sua prórpia fé, se você tiver alguma.
"Nenhuma das religiões do mundo legitima o lucro pessoal a qualquer custo, apesar disso, esta é a ideologia dominante propagada nas decisões políticas e econômicas em altos níveis e todo o mundo."
(Mary Evelyn Tucker e John Grim em The Crisis of Planetary Health: Reflections from the World Religions)
Por isso, o respeito à vida indígena é, inquestionavelmente, um investimento inegável à proteção da natureza. Nenhum outro povo tem o capital moral e intelectual que eles tem para salvar as nossas florestas.
O que podemos fazer, na prática?
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Quando nos permitimos ter experiências transculturais e fazer a observação respeitosa das tradições de outros povos, passamos a enxergar e a pensar diferente. Essa nova visão nos abre caminhos e encontramos respostas para velhos problemas que afligem a nossa sociedade. A pandemia é o mais emergente desses problemas, mas não é mais urgente: o ponto chave é atingir a raiz dessa aflição global, que é o abandono da ecojustiça.
E os povos indígenas já tem esse conhecimento. Ou você acha coincidência que eles estejam sendo mortos e expulsos o tempo todo?
Também quero que você termine o texto com uma mensagem central: o respeito à vida e a dignidade humana materializadas na cultura indígena são a única saída viável para a proteção da biodiversidade remanescente no mundo. Devolver a Amazônia (e todos os outros biomas) às mãos dos seus guardiões originais é a única forma de nos protegermos das próximas pandemias que virão e de não perdermos os recursos que tanto queremos.
"Nossas comunidades são orientadas para a Sustentabilidade. Enquanto todo mundo está tentando encontrar soluções sobre o que fazer para enfrentar a crise climática, eles olham para as cidades, mas ninguém está olhando para o que estamos fazendo em nossas vilas e comunidades"
"Eu lembro que um ancião me disse, o problema com as pessoas da cidade é que elas comem e bebem coisas mortas... elas bebem água morta em garrafas de plástico e comem comida morta dos supermercados. Não existe garantia de que nada disso seja seguro."
(Mina Setra, Secretária Geral da Alianca de Povos Indígenas da Indonésia).
Faça a sua parte. E assim que puder, viaje.
ótima abordagem. O turismo predatório disneylandizado vem sendo apontado como um grande problema de muitas cidades e regiões inteiras, que cogitam inclusive o encerramento desse tipo de atividade. Já que paramos, porque não repensar, remodelar? Se não mudarmos agora, vamos perder nossa carona para o futuro.