O primeiro post do mês de abril traz algo leve pra aliviar o peso das notícias trágicas sobre a epidemia. Mas ele não deixa de falar de sustentabilidade: o assunto aqui é cultura e sociedade, e como viajar pode nos ajudar a derrubar o preconceito.
Os seres de alma viajante reconhecem desde cedo que o mundo é infinitamente diverso em termos de cultura e natureza, e por isso merece ser explorado. Mas quando nos aventuramos a realizar essa jornada, rapidamente perdemos a ilusão de que seremos capazes de compreender a imensidão dessa riqueza: quanto mais viajamos, mais cedo constatamos que a diversidade é muito maior do que qualquer um de nós um dia será capaz de perscrutar.
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Antes de vir para a Itália eu estudei a língua e cultura italiana e desbravei todo o conteúdo de blogs que pude encontrar. E NADA me preparou para o que eu encontrei nesse maravilhoso país!
A primeira coisa que se aprende na estrada é a superar os estereótipos. Essa imagem pré-concebida é a única referência daquele que não viaja e não vive a experiência de maneira profunda. Quando imergimos na cultura, somos capazes de perceber tanta coisa que ela não cabe mais na ideia limitada que tínhamos e no rótulo que lhe dávamos antes de conhecê-la.
Vamos lá, confessa! Faça uma pausa na leitura e descreva mentalmente o estereótipo do povo italiano. Por que você quer visitar a Itália ou qual foi a visão que você tinha antes de desembarcar no país pela primeira vez?
Deixa eu adivinhar: Na sua concepção...
... todo mundo almoça pizza e janta pasta?
... come-se muito (bem) e bebe-se muito vinho?
... cantam O Sole Mio na rua?
... todos moram em vilazinhas de pedra, andam de bicicleta com cestinha de flores ou uma boina italiana e uma baguete na mão?
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É, sinto em dizer, é puro estereótipo. Mas não se julgue, a culpa não é sua. Essa é a imagem que propagam pra gente sobre o povo italiano, e quando não conhecemos uma cultura, não temos outra referência.
De acordo com a Wikipedia:
Estereótipo é o conceito ou imagem preconcebida, padronizada e generalizada estabelecida pelo senso comum, sem conhecimento profundo, sobre algo ou alguém.
Mas o que eu quero te contar aqui é que, apesar de a cultura e o povo italiano serem muito mais do que o estereótipo reducionista, ele ainda existe até mesmo entre os habitantes de diferentes regiões.
Então, este texto é pra te falar duas coisas:
Que stereótipos existem até mesmo entre os italianos, mas...
A diversidade da cultura italiana vai muuuito além desses rótulos reducionistas. Prepare-se para se surpreender.
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Existe uma diversidade cultural gigantesca ao longo do território italiano, como é de se esperar em qualquer nação que se orgulha de sua cultura e preza por conservar seus regionalismos. Embora a globalização e o acesso a tecnologias (entre outros fatores) possa estar diluindo aos poucos alguns aspectos mais marcantes das culturas em diversos países (falarei disso em outro texto), ainda há traços muito marcantes preservados entre as regiões e províncias da Itália.
A unificação da Itália é considerado o nascimento da nação, e foi uma luta contínua travada entre os anos de 1815 e 1870. O que hoje conhecemos com Itália já foi um conjunto de muitas nações que eram colônias de outras potências estrangeiras. O Risorgimento, como é denominado esse evento, aconteceu agregando povos e culturas que estiveram separados por milênios, juntos em um mesmo domínio. É de se esperar que um povo que só está unido como nação há 250 anos seja culturalmente homogêneo?
Por exemplo: em uma das primeiras interações com alguns italianos, eles quebraram meu preconceito dizendo: "a pasta daqui não é tão boa como a pasta da Sicilia, que é a melhor da Itália. O nosso vinho, por outro lado...". E eu pensando comigo: "oi? Existe algum lugar onde a pasta não é 'tão boa'?"
É que eles reconhecem e valorizam a supremacia culinária (ou cultural, em geral) de cada região. É como se cada grupo fosse responsável pela sua especialidade: um tem a melhor pasta, outro tem o melhor vinho, o outro, o melhor queijo, o melhor gianduiotto, o melhor café... Então, a primeira sugestão para uma imersão cultural na Itália é quebrar a impressão generalizada de que um povo tão diverso seja igualmente bom (ou ruim) em tudo. As culturas são muito ricas para caberem em um potinho só.
Segunda coisa: sabendo que eles reconhecem as diferenças entre as regiões como a riqueza da sua cultura, é de se esperar que também existam estereótipos entre o próprio povo italiano. E de fato, há. A imagem mais popular do povo italiano entre nós é na verdade a imagem do italiano do sul. O estereótipo de cidade italiana que conhecemos é também das cidades mais ao sul. Mas entre o sul e o norte da itália existe muita difersidade cultural.
Uma pausa: a minha hipótese é de que, durante a Segunda Guerra Mundial, a massa que emigrou da Itália para os Estados Unidos e Brasil foi majoritariamente do sul, levando consigo os traços culturais com os quais nós, brasileiros, estamos mais familiarizados. Mas a Itália não é só Napoli. É muito mais!
No momento em que estou escrevendo este texto, estou em Torino (ou Turim), uma grande cidade que é o capoluogo da região de Piemonte e foi a sede do governo monárquico da dinastia de Savoia antes da unificação da Itália. Esta região está na divisa com os alpes franceses, e é especialista no cultivo de avelã e na produção da gianduia (o gianduiotto, um bombom de chocolate com avelã, é um dos símbolos culinários de Piemonte). Para te dar uma referência, Torino é a cidade onde está a sede da Fiat e do Juventus, e na região de Piemonte estão a sede da Nutella e da Ferrero Roche.
Torino (Turim) à esquerda e Milano (Milão) à direita.
Torino não é tão grande como Milão, e na minha visão exala mais história do que a irmã do norte. Milão é mais moderna e cosmopolita, e evoluiu economicamente como referência da moda e da arquitetura. São cidades com perfis bem diferentes, mas que juntas, atraem a maioria esmagadora da força de trabalho jovem da Itália, onde também concentram as maiores universidades com oferta de formação técnica (como engenharias).
As regiões do norte estão aos pés dos alpes, onde o inverno é longo, branco e rigoroso, a névoa é insistente e as chuvas são abundantes (supostamente). Por todos esses aspectos, normalmente se constrói a visão do cidadão do norte como uma pessoa fria e focada em trabalho, enquanto os sulistas são rotulados como "buona vitta", que querem apreciar o seu café sob o sol do Mediterrâneo.
Mas veja, eu estou usando os estereótipos para descaracterizar a nossa imagem de estereótipos.
Senti que o orgulho da cultura e dos produtos locais é uma das marcas mais fortes desse povo. No supermercado, os produtos de destaque tem em seu rótulo: "produto 100% italiano". Isso é se achar melhor que os outros povos? De forma nenhuma! Esse orgulho é uma postura de valorização. É investir no desenvolvimento da economia local e apoiar o produtor da região. Sustentabilidade também é priorizar produtos km0 (aqueles que não são transportatos a partir de outros lugares distantes).
O que eu quero lembrar é que faz parte da postura de um viajante responsável pesquisar sobre a cultura do destino (culinária é cultura também) e se esforçar pro desfrutar a experiência da forma mais autêntica possível. Desconstruir a imagem estereotipada é a primeira etapa desse processo. Mas isso não nos prepara o suficiente para as descobertas da experiência real de estar aqui. Observar um povo é uma coisa fantástica de se fazer. Não dá pra descrever como isso contribui com o nosso crescimento pessoal.
Ao se preparar para uma aventura, pesquise bastante, mas mantenha a mente aberta para se surpreender, e saiba distinguir o que é informação cultural do que é estereótipo que gera preconceito.
Pra encerrar, recomendo um filme italiano que assisti recentemente, e que caracteriza essa diferença cultural entre o norte e o sul da Itália, intitulado Benvenuti al Sud, 2010. Por ser uma comédia, as diferenças culturais são avantajadas e caricatas, mas eu não poderia dizer o quanto recomendo que você veja (não deixe de assistir o trailer abaixo).
Um abraço!
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